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Algumas notas sobre felos e felonia – rir e comemorar o entroido em Maceda (*)

Artigo de Paula Godinho, do Dep. de Antropologia e Instituto de História Contemporânea, Facultade de Ciências Sociais  e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

 

Un dos Felos de Maceda.
Un dos Felos de Maceda.

Tioira é numa imensa planura, de milho e vacas, com a serra de S. Mamede em fundo. É esta a terra dos felos, em Maceda, que chegam com as suas máscaras, o fato elegante e um ar de troça provocador. Acodem em grupo, vêm em família, porque as mulheres e as crianças já podem envergar o fato dourado e elegante. Sigo-os pelas ruas da aldeia, enquanto o dia vai desaparecendo e o frio aumenta. Param no «Lar dos Felos», comem empanada e filloas, bebem. Tiram então as máscaras, que deixam alinhadas com outras idênticas, variando só o animal da serra representado. Restabelecidos do esforço, depois de correr à desfilada pelos «pobos», agitando os chocalhos, partem com a máscara do riso sobre as caras jubilosas, no esforço a que o ritmo da festa retira o cansaço. Num mimetismo de situação, o riso da máscara convoca o nosso.

O riso é uma expressão da visão do mundo e da cultura das camadas populares, estando associado a inúmeras festas europeias do ciclo de Inverno, com ritos e cultos cómicos, com personagens como os bobos e os bufões, os gigantes e anões, os monstros e os palhaços. No Entroido de Maceda mandam os felos. Ali feminiza-se o acto de rir: a risa, que ri na máscara, com o descaramento desarmante de uma meia-lua de dentes alvos. Retirada a máscara que ri, riem as mulheres, riem os moços e os mais velhos, com a barrigada alegre da festa, o riso inquieto e depois farto, partilhado, duradouro.

Felonia é sinónimo de engano e rebelião. Está associada à obstinação dos fracos, à aleivosia contra os senhores, à renitência à dominação, protagonizada pelo felo, que ri sempre, dentro e fora do fato, elegante por paródia dos poderosos. A cultura popular é rebelde em defesa dos costumes e com uma vida melhor em mira. Resiste tão activamente como pode e tão passivamente como deve, em função dos momentos e das forças que consegue conjugar. No tempo longo de seis mil anos da agricultura, acompanhando um calendário lunar e solar, cujo ritmo dos trabalhos e das festas foi gerido pelo cristianismo nos últimos dois mil anos, os felos, com o riso espaventoso, a boca desenhada em meia-lua, aproveitaram as gretas do tempo para irromper, subvertendo um estado de coisas, pondo em guarda os que representam o mando.

Os poderosos não gostam do riso nem do Entroido, porque se sabem ridícularizados na ironia mordente, na fanfarronada alegre, na sátira grotesca. A risa foi sempre temida, também na sua remissão para o baixo-ventre dos insultos e do sexo. Os poderes religiosos e civis, emparelhados num idêntico desígnio, quiseram regulamentá-la, pois a sua transgressão era temível. Quanto mais tremendo foi o poder, mais espessas se tornaram as máscaras – mas continuaram a rir. Há por aqui registo da revolta dos servos, em irmandade, contra as duras taxas, os impostos, as rendas. Rebelaram-se contra os tributos e dízimos que longamente oneraram os galegos, que os fizeram emigrar, deslocando-se a pé para terras de Castela, para as margens do Douro português, ou para mais longe.

Resistiram num tempo longo, os de Maceda. Põem a máscara e são felos, gente de felonia. O objecto do riso é alvo de humilhação, de assuada social. Por isso, os ditadores não gostam dele, nem de festas com o povo jubiloso nas ruas. Muito menos toleram as máscaras, porque sabem que atrás do seu poder, doseu triste, guardado e solitário poder, são ridículos e que os povos o sabem – e riem deles. Depois do golpe de Julho de 1936, o Carnaval foi o primeiro feriado retirado do calendário por Franco nas zonas que foram ocupadas, logo no início de Fevereiro de 1937.

O Entroido galego era temível, pela crítica social, o meneio erótico a incentivar ao gozo e a uma existência vivida com gosto, as máscaras que riam. Antes mesmo de eliminar o dia que celebrava a República, Franco baniu o riso do Entrudo. O medo do ridículo mandava mais que o ditador. Maceda foi uma das muitas terras galegas que resistiu ao avanço dos golpistas, com a sua população e os carrilanos. Tragicamente reprimidos, foram alvo de represálias e de tentativas de aniquilamento. Os franquistas tornaram o medo viscoso, entrou pelas casas e pelas vidas, remeteu o riso para o domínio oculto. Já não na rua, mas dentro de casa, sabiam que o riso era uma arma. E riam, no recato doméstico, entre si, nos grupos sólidos em que a confiança era possível, à espera do momento em que se tornasse possível reconquistar o espaço da rua para o riso.

 

A antropóloga Paula Godinho.
A antropóloga Paula Godinho.

No Entroido de Maceda, os felos circulam hoje pelas aldeias, provocam e riem, no júbilo alegre de provém dum tempo longo, de uma sociedade agrícola que interrompia o tempo da produção para a festa e para a transgressão. Agora, já à distância, depois de ter corrido com os felos, e quando ainda oiço retinir os seus chocalhos, parece-me detectar quatro fases no seu riso: o riso constante de uma sociedade rural; o riso desalentado pelo franquismo e a emigração; o riso crítico, da cidadania que se reconstrói no final da ditadura; o riso patrimonial, paradoxalmente a emergir numa sociedade que vai sendo empobrecida pelas práticas dos que a governam.

Porém, nesta última etapa, em Maceda pouco se destina aos de fora, já que a exportação de segmentos festivos não anulou a fruição local e os vizinhos de Maceda continuam a rir no seu Entroido, divertindo-se com as suas máscaras. Regressam de longe para as vestir e circular, agitando os seus chocalhos, nos dias que dura a festa. Riem em grupo, cúmplices, cientes de que possuem uma espécie de idioma social comum, cuja comicidade pode ser intraduzível para os de fora. Por vezes, convém que seja; essa conivência reforça o grupo e acrescenta as razões para o riso. Temos de aprender com a felonia, neste tempo em que tudo parece efémero, periclitante, perigoso.

(*) Um versão alongada sobre este tema foi publicada em 2012 Da felonia – Apontamentos sobre a risa e o entroido de Maceda, Santiago de Compostela, Amastra-N-Gallar.

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